sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A sociedade do telemóvel!

Os desenvolvimentos tecnológicos têm consequências, muitas vezes imprevistas, sobre a estrutura social das sociedades. Poderemos falar na emergência de uma sociedade do telemóvel?

Segundo Anthony Giddens o termo modernidade refere-se aos modos de vida e de organização social que emergiram na Europa por volta do século XVII. Para o autor "a modernidade altera radicalmente a natureza da vida social quotidiana e afecta os aspectos mais pessoais da nossa experiência. (...) A vida social moderna caracteriza-se por processos profundos da reorganização do tempo e do espaço, aliados à expansão de mecanismos de descontextualização – mecanismos conducentes à abstracção das relações sociais de localizações específicas, recombinando-se através de vastas distâncias de espaço-tempo". O telemóvel altera radicalmente estas distâncias.

  • O objecto que mais mudou os nossos hábitos sociais não é o computador, nem a Internet, nem o cabo, é o telemóvel. (...)

    É o caso do relógio que saiu do laboratório das excentricidades, um pouco como precursor de um Meccano ou um Lego moderno, ou de um jogo de habilidade mecânica, ou de um objecto de luxo tão curioso como inútil, para se transformar numa necessidade tão vital que biliões de homens o trazem no pulso. Se exceptuarmos o uso dos relógios nos navios para calcular a longitude, os relógios não serviam para nada quando a esmagadora maioria das pessoas trabalhava de sol a sol, ou ao ciclo das estações, e estas dependiam de um calendário que estava escrito nos astros. Calendários eram precisos, relógios não eram precisos, até ao momento em que a Revolução Industrial apareceu e mudou quase tudo por onde passou. Milhões de pessoas vieram dos campos para as cidades, para as fábricas e para as minas, e precisavam de horas. O relógio subiu primeiro para as torres ou para o centro da fachada neoclássica das fábricas e lá continuou, passando depois para dentro, e depois para o bolso dos ricos e por fim para o pulso de todos. Hoje o relógio ordena o nosso tempo com um rigor muito para além do biológico e manda no nosso corpo, como nenhum objecto do passado. É tão presente que parece invisível, nem damos por ela que está lá, é parte do nosso corpo, mais do que objecto estranho. Um figurante do Ben Hur esqueceu-se dele, e nos filmes há quem vá para a cama sem ser para dormir, só vestido no pulso. (...)

    (...) Luta-se por um telemóvel, porque num telemóvel de um adolescente está muito do seu mundo: telefones dos amigos, telefone dos namorados, passwords, fotografias, mensagens, vídeos, o equivalente a um diário pessoal, em muitos casos mais íntimo que um diário à antiga, com a sua chavinha de brincar que dava a ilusão de que ninguém o lia. À medida que se caminha pela idade acima o conteúdo do telemóvel muda, mas continua pessoal e intransmissível, com os SMS comprometedores que arruínam muitos casamentos, até se tornar quase um telefone de emergência que os filhos dão aos pais com os números deles já gravados e os das emergências: "é só carregar aqui e eu atendo, se houver qualquer problema, assim não se sente sozinho." Sente. (...)

    (...) o magnífico instrumento de controlo que é o telemóvel, pessoa a pessoa, numa rede que prende os indivíduos numa impossível fuga àquilo que é o objecto sempre presente, sempre ligado (os telemóveis desligados são de desconfiar), no qual a primeira pergunta é sempre "onde tu estás?", uma pergunta sem sentido no telefone fixo, esse anacronismo. Adolescentes jovens ou tardios, casais, maridos, mulheres, amantes, namorados, patrões e empregados, jogam todos os dias esse jogo do controlo muito mais importante do que a necessidade de falar ao telemóvel. Na verdade a esmagadora maioria das chamadas de telemóvel não tem qualquer objecto ou necessidade de ser feita, ninguém as faria num mundo de telefones fixos, que não seja pelo controlo, pela presentificação do indivíduo no seu jogo de inseguranças, solidões, afectos, e medos, através da caixa electrónica que se segura numa mão.

    Não é a necessidade que justifica a presença quase universal dos telemóveis desde as crianças de seis anos até aos velhos, os milhões de chamadas a qualquer hora do dia, em qualquer sítio, da missa à sala de aulas, do carro à cama, é o complexo jogo de interacções sociais que ele permite, sem as quais já não sabemos viver. Viver num mundo muito diferente e cada vez mais diferente.
    José Pacheco Pereira – PÚBLICO, 12/ABRIL/2008
  • A cultura e a dependência da imagem que caracterizam os jovens de hoje exigem novas abordagens. E assim chegamos ao telemóvel, afinal o protagonista desta triste estória. Um pequeno telefone é um herói para o seu jovem dono, espécie de prolongamento do seu corpo e definidor dos seus relacionamentos: com ele se namora, se evita a solidão, se copia nos testes, se recebem ralhos ou mimos dos pais, se goza com os políticos ou os professores. As mensagens escritas, gratuitas em muitos casos por jogada bem calculada das operadoras, são os "papelinhos" trocados à socapa dos velhos tempos. Mais do que isso: com as câmaras de filmar dos telemóveis, registam-se cenas sexuais depois exibidas sem pudor ou, na terrível moda do "happy slapping", um adolescente agride outro desprevenido, para riso de um grupo que filma a cena.
    Daniel Sampaio - PÚBLICO, 30/MARÇO/2008
  • Onde é que já se viu hoje em dia não ter telemóvel, deixar de jogar playstation ou counterstrike em rede, ir para o hi5, deixar de mandar mails, chats e MSN, sacar filmes e umas músicas, ou para aqueles mais rebarbados sacar uns filmes XXX para vêr à noite?
    Pois, há cerca de 10-15 anos atrás, não havia.
Resumo O uso dos telemóveis generalizou-se de tal modo, que se pode afirmar que essa tecnologia se naturalizou, passou a fazer parte integrante das dinâmicas do indivíduo. Quem não tem hoje um telemóvel em Portugal e, no mundo ocidental em geral? O fenómeno expandiu-se sem olhar a classe social, económica, cultural, género ou idade. Os serviços disponibilizados pelos equipamentos foram-se desdobrando para atrair e satisfazer necessidades e desejos. Onde quer que se esteja está-se com quem e com o que se quer e precisa – “A era da conexão é a era da mobilidade” (Lemos,2004:3). Abre-se uma nova vaga na dinâmica das rotinas cognitivas e sociais metamorfoseadas pelas tecnologias da informação e da comunicação, em que a ubiquidade e o nomadismo são características marcantes. Mas, não deixa de ser igualmente marcante a nova dinâmica de gestão dos contactos e dos laços sociais. O que aparentemente traria um alargamento do círculo de sociabilidade, afinal afigura-se como meio de fechamento do sujeito num círculo restrito e controlado, no qual só entra quem é reconhecido. Deste modo, gerando o que Gournay (2002:355) designa de insularidade mediática mas, que também poderemos designar de geração de arquipélagos de comunicação – «L’insularité médiatique constitue la propriété marquante de la communication mobile, autant dans l’espace public que prive. Une insularité mouvante qui assure une fluidité maximale de la circulation des informations et des personnes, au prix de l’évitement ou du contournement de la proximité indésirable avec l’entourage, qu’il s’agisse du public anonyme, de clients ou d’administrés inopportuns, ou tout simplement de relations trop pesantes.» (Gournay 2002:355) Com a expansão do uso das comunicações móveis são identificados três níveis de tensão com a ecologia do espaço público (Morel,2002:51), a saber: o primeiro deve-se às melodias e sonoridades intempestivas que ferem a dinâmica sonora e relacional dos espaços; em segundo lugar, o acto de telefonar onde quer que se esteja altera os modos de presença e relacionamento com o espaço públicos e respectivos actores, alguns dos quais passam a estar presentes, mesmo na ausência física; num terceiro nível, o uso público de meios de comunicação móvel transporta do que foi durante muito tempo tido como do espaço privado para o espaço público, ou seja, o acto de telefonar estava associado ao lar ou ao espaço de trabalho, passa agora a estar onde quer que estejamos, com especial impacto na dinâmica de estar no espaço público ou em espaço partilhados (semipúblicos). A presente comunicação propõe-se reflectir sobre as mudanças sociais que a comunicação móvel introduz e apresentar alguns resultados frutos de estudos empíricos. Deste modo, pretende-se dar um contributo para estimular a reflexão sobre as implicações do uso de uma tecnologia que se alojou no nosso quotidiano como um vírus multiresistente ao qual ninguém escapa, mesmo os que tentam minimizar a sua presença e impacto, tal é a pressão social.
http://www.youtube.com/watch?v=2ZO8rrDkDKc

1. Considera excessiva a expressão "sociedade do telemóvel"? Justifique.

2. Será que o telemóvel promove o anulamento do diálogo directo, já que é mais fácil mandar uma mensagem ou falar via telemóvel? Discuta contextos diversificados.

3. Estamos a assistir à construção de uma sociedade mais aberta os mais fechada? Justifique.

4. Comente os valores de Sónia no modo como efectuou o carregamento do telemóvel.



Núcleo Gerador: Redes de Informação e Comunicação
Dimensões das Competências: Sociedade
Domínios de Referência: DR1 – Telemóvel
Elementos de Complexidade: Tipo I, II e III